8 de set. de 2013

- O Homem No Sofá -

Cheguei em casa depois de uma longa jornada de trabalho. O silêncio tradicionalmente me recebeu sem cerimônia. Abri a porta apressada, entrei e mesmo com o esforço de fechar a porta delicadamente acabei soltando a maçaneta e um estrondo me atacou os ouvidos. 
Foi como se alguém puxasse a porta pelo lado de fora.
A iluminação na casa era fraca, apenas o que conseguia roubar dos postes de luz da rua. Fui em direção à sala de jantar para tirar a bolsa dos ombros com os olhos já mais acostumados à penumbra. Foi quando olhei para o lado e vi nitidamente um homem sentado no sofá. Pernas cruzadas, vestido todo de preto. Apenas me acenou rapidamente. Não abriu a boca, mas era como se um sorriso infernal se desenhasse numa face sem rosto. Seus olhos e boca na verdade eram uma mancha escura sem definição. Tudo o que eu via era uma sombra do que poderia ser. A boca se entreabriu sem falar.

Congelei com o susto. Ele era magro, descomunalmente alto. Tudo durou apenas alguns milésimos de segundos. O suficiente para minha bolsa se espatifar no chão e tudo o que havia dentro dela rolar pela sala.

Sai do torpor e acendi a luz.

Não havia mais nada lá, nem sinal de alguém sentado no sofá.

Peguei os objetos da bolsa na mão e joguei tudo em cima da mesa. Fui até a cozinha beber água.

Fiquei mais calma, acabei acreditando que era uma sombra formada pela luz dos postes e me forcei a esquecer do assunto.

Fui tomar banho.

“Tudo o que preciso é de uma ducha quente e demorada”, pensei.

Entrei no chuveiro e me entreguei aquele momento relaxante. A porta do banheiro ficou trancada para segurar o vapor lá dentro. Fiquei de olhos bem fechados por causa do xampu que escorria, quando senti uma brisa gelada passando por mim. Ouvi nitidamente a porta do banheiro rangendo e se abrindo. "Como isso? Tô sozinha. A janela também tá fechada, não tem como abrir esta porta”, pensei já com o coração na mão.

Abri os olhos e a cortina do box praticamente ao mesmo instante. A porta estava absolutamente fechada, como deveria estar.

Praguejei em voz alta e voltei ao chuveiro. Mesmo com a porta fechada eu sentia que alguma coisa estava comigo naquele banheiro. Não consegui mais fechar os olhos e desisti de terminar a lavagem do cabelo.
Sai rápido do box e o espelho estava completamente embaçado. Me enrolei na toalha grande e peguei a de rosto para limpar um pouco aquela fumaça. Na primeira passada que dei com o pano vi atrás de mim o homem de preto. Minha respiração parou. Ele sorria naquele rosto sem rosto. Eu gritei e olhei para trás imediatamente. Ele não estava lá. Sai rápido do banheiro.

Suspirei fundo. Eu estava vendo coisas. Estava cansada, com fome. Resolvi dormir pra esquecer tudo aquilo.

Foi uma noite agitada com muitos sonhos complexos. Em quase todos alguém me perseguia. Acordei com o despertador gritando loucamente no horário marcado de sempre. Nem pensei na noite anterior. Fui para o trabalho normalmente e assim passou o dia.

De volta à noite, a mesma cena se repetiu: fui fechar a porta de entrada e ela bateu como se alguém a puxasse de mim. Já entrei em casa acendendo a luz, meio inconscientemente de que era para evitar sustos. Depois de jantar, fui tomar meu banho para poder dormir calmamente. Banho sempre me acalma.
Deixei a porta aberta, o vapor não embaçou o espelho.

Nada aconteceu de extraordinário. Banho tomado, fiquei em frente ao espelho para desembaraçar o cabelo. Meus olhos corriam para ver se tinha alguma coisa atrás de mim, mas nada. Estava tudo bem. Foi quando me olhei nos olhos e vi que meu rosto não era mais o meu. Era uma face sem rosto. Eu não tinha olhos nem boca definidos. Era a mesma sombra que vi na cara do homem de preto. Me assustei comigo. Gritei e fechei os olhos. Por segundos parei de respirar. Ao abrir os olhos novamente eu já havia voltado ao normal. Toquei meu rosto para ter certeza que eu estava ali.

Fui dormir com medo. Ouvido atento a todos os barulhos do mundo. Quando estava quase pegando no sono ouvi passos pesados no corredor da casa. Eram apressados e pararam em frente ao meu quarto. A porta estava entreaberta. Abri os olhos e não tive coragem de olhar para a porta. Sabia que havia alguém ali me espiando, mas não consegui me mexer. Comecei a suar frio até que a porta fechou, sozinha. Se fosse uma lufada de vento ela se abriria, mas não, a porta fechou. E com força.

Sentei na cama, acendi a luz e pra minha surpresa a porta continuava entreaberta. As luzes do corredor estavam acesas sem que eu lembrasse tê-las acendido.

Fechei a porta e voltei para a cama. Não dormi. Logo quando os primeiros raios de sol bateram na janela, levantei.

Fui ao banheiro lavar o rosto e não me encarei no espelho.

Ao chegar na sala, mais uma surpresa: o sofá estava completamente despedaçado. Havia espuma espalhada por tudo. Alguém muito forte havia destruído o móvel.

Entrei em pânico. Liguei para o serviço avisando que não iria trabalhar. Sai de casa enlouquecida e fui procurar minha mãe.

Minha velha mãe está doente, não sabe em que mundo vive, mora com uma enfermeira que a trata como se fosse filha. Tem todo o conforto que o dinheiro pode oferecer a uma senhora idosa. A coitadinha já não ouve direito e está sempre me oferecendo chá.

Tomei um chá com minha mãe surda e louca. A enfermeira me perguntou se estava tudo bem. Menti e disse que sim, tudo em ordem.

Sai de lá e fui andar a esmo. Eu não queria voltar para casa.

Acabei achando um sofá baratinho numa loja de móveis usados e combinei de me entregarem a mercadoria ainda naquela tarde.

Andei mais um pouco e resolvi voltar para casa para esperar a entrega do sofá novo.

Quando cheguei em casa ainda havia luz do dia e o sofá despedaçado simplesmente estava inteiro. Não havia sinal de destruição.

Andei em volta, e não achei nada que pudesse revelar que aquele era um sofá diferente do meu. Mas como poderia estar inteiro? Comecei a chorar.

Eu estou ficando louca, concluí.

Fui até a geladeira pegar água, bebi um copo de um só gole. E fui ao banheiro.

Novamente me olhei no espelho e dessa vez encarei meus olhos. Eu não estava mais lá. Era novamente aquela figura monstruosa que me encarava. Eu toquei nela e senti uma eletricidade percorrendo meu corpo. Tirei a mão do espelho e dei um soco no monstro que me olhava do outro lado do espelho. Imediatamente meu rosto se transformou e voltou a me encarar com as minhas feições.

Sai chorando pro quarto, me joguei na cama e acabei adormecendo.

Os homens do novo sofá chegaram e não entenderam nada sobre a nova aquisição. Ficou muito esquisito um sofá novo ao lado de outro ainda em bom estado e sem lugar algum para as pessoas passarem.

– Tô mudando a decoração, esse daí foi vendido, vai embora amanhã, expliquei aos dois homens que montavam o sofá novo. Eles olharam para mim sem interesse algum e continuaram o serviço.

Foi rápido, foram embora sem muitos contratempos.

A noite chegou e eu me vi sozinha novamente naquele apartamento escuro. Acendi as luzes, mas por algum infortúnio do destino, todas se apagaram ao mesmo tempo, inclusive os postes da rua. A escuridão tomou conta de tudo. Eu estava apavorada e fui buscar velas para iluminar o ambiente. Acendi duas ou três e fiquei observando as sombras que se formavam nas paredes.

Aquele fogo foi me entorpecendo. Acabei pegando no sono no sofá novo. Acordei assustada com todas as luzes voltando a funcionar ao mesmo tempo pouco depois do blackout.

Ao abrir os olhos pude jurar que ouvi novamente passos no corredor. Não quis saber se era verdade ou não. Me encolhi no sofá e fiquei por lá esperando a noite acabar.

No outro dia tive de ir ao trabalho. Estava arrasada depois de tantas noites mal dormidas. 

Me arrastei o dia inteiro. Na volta para casa peguei o elevador e me encostei na parede da velha máquina esperando chegar até o meu andar. Ele passou direto.

– Mas que merda, falei em voz alta.

Eu teria de descer no 12º andar, mas ele foi até o 18º, o último andar. Chegando nesse último andar a porta se abriu, apertei o botão para voltar ao 12º, mas a porta não fechou. Insisti e nada. Sai do elevador inconformada, e fui em direção à escada, afinal não seria muito descer até o 12º.

Quando pisei fora do elevador, a porta imediatamente fechou e ele foi embora. Praguejei mais uma vez e andei para a escada.

Eu nunca antes tinha ido até ali. E me espantei ao ver que o andar inteiro era muito velho. Decadente, como se há mil anos ninguém estivesse por lá. A luz era diferente, meio avermelhada. As janelas refletiam sombras que se moviam rapidamente apesar de não ter sinal de vento lá fora.

Os móveis eram de séculos passados, a decoração meio religiosa e profana ao mesmo tempo. Tudo era muito estranho. O andar era maior, e tinha divisões bastante diferentes do meu andar. Não consegui entender como um prédio tão novo teria aquele andar tão antigo e tão singular.

Andei por ele procurando a escada. Dobrei em corredores que nunca tinha visto antes e dava de cara com as mesmas mesas velhas e carcomidas. As paredes estavam descascando uma pintura muito antiga. O cheio de mofo e cemitério estava entranhado no carpete vermelho. O ar era pesado como se mil almas morassem por ali.

De canto de olho percebi uma sombra se escondendo ao dobrar um corredor. Fui em direção a ela.

– Ei, por favor, você pode me ajudar? Ei.

Gritei para o nada. Não havia ninguém ali.

Outra vez vi, de rabo de olho, uma sombra mais adiante. Não fui atrás dessa vez. Ignorei. Mas ao passar em frente a um dos apartamentos do andar, uma porta estava entreaberta. Empurrei para entrar e comecei a chamar quem estivesse por lá.

O apartamento era no formato do meu, os móveis, no entanto, mantinham as formas antigas do resto do andar.

– Tem alguém ai? Vizinho?

Ninguém respondeu. Ouvi passos vindo do outro lado do corredor. Entrei em pânico porque eram os mesmos passos pesados e o mesmo ritmo daqueles que ouvira na minha casa. Fechei a porta do apartamento rezando para não ter nenhum inquilino. Não tinha.

Estava meio escuro, andei por ele tateando no ar. Mas era exatamente igual ao meu e sequer tropecei.
Fui até a pia do banheiro e olhei no espelho. Eu estava lá. Nenhum monstro me encarava.

Fechei os olhos e suspirei. Ao abrir os olhos eu vi como num filme: eu estava saindo do banho e me assustava comigo mesma, do outro lado do espelho. Estava vendo um filme de mim mesma.  Nesta hora o meu eu do outro lado quebrou o espelho que nos separava e eu pude sentir que atrás de mim alguém me acompanhava.

Virei devagar e o homem de preto estava lá. Ele sorria. Tinha agora o rosto com olhos e boca. Eram olhos tão maldosos que eu congelei. O sorriso era diabólico. Ele apenas esticou o braço descomunal em minha direção. E eu sai correndo, corri pela casa, corri pelo corredor, corri em direção ao elevador e a porta se abriu.

O homem ficou parado no meio do corredor me olhando e rindo. O elevador fechou e desci no meu andar.
Não conseguia encaixar a chave na fechadura, tamanho era meu tremor nas mãos. Eu chorava de medo. Deixei a chave cair, e com muito custo abri a porta.

Meu apartamento estava escuro. Entrei e me apoiei no sofá novo quase sem fôlego. Ouvi um grito vindo do meu banheiro. Fui até ele e no espelho vi a mim mesma fugindo de um homem de preto. Novamente pensei em um filme.

Em seguida ouvi passos em frente à porta de entrada. Fui em direção a porta da frente e ouvi uma chave caindo no chão. Me vi entrando, sem rosto, sem olhos, sem boca, apenas uma sombra do que poderia ser. Fiquei me encarando sem palavras. Lá atrás do outro eu o homem de preto chegava devagar. E sorrindo.

fonte:Assombrado.com

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