Quando acordei, continuava sentindo-me exausto. Eu estava dentro de um carro, sentado no carona, e devo ter adormecido escorado na janela, mas a verdade é que nem me lembro. Nos meus pés havia quase uma dúzia de garrafas de Heineken vazias... ah sim, claro, agora eu me lembro. No volante estava uma amiga minha, melhor amiga na verdade, e tem sido a mesma coisa a 17 anos. Fico feliz por isso. Conosco carregávamos algumas mochilas e sacolas, apenas o que tínhamos, se for parar pra pensar. Não posso dizer que era uma viagem com rumo certo, pois não era. Nunca foi. Nós dois apenas pegávamos a estrada e o destino fazia o resto, e o melhor de tudo é que ambos ficávamos satisfeitos. O destino nunca havia sido cruel com nós dois. Para começar, ele havia nos unido. Ainda lembro como se fosse hoje: a 17 anos atrás, quando meus olhos encontraram aquela menininha loira entrando na sala de aula - ''Esta é a nova coleguinha de vocês, digam oi pra Laura.'' - disse a professora. Infelizmente eu nunca consegui dar oi pra ela, durante metade do ano, eu apenas a observava. Um dia ela percebeu que eu estava a olhando e sorriu; fiquei vermelho e não sabia onde me esconder; ela então se aproximou e me deu oi. Perguntou se eu emprestava meus lápis, e ficou encantada com meus desenhos. Aproveitei aquele momento para fazer amizade, e acabamos nos tornando inseparáveis. Agora eu estava com 25 anos, e ela completaria a mesma idade em poucas semanas.
Olhei pelo vidro - estava embaçado por causa do sereno - esfreguei a manga da minha camiseta nele e vi que já estava anoitecendo. O céu estava bem nublado, com algumas nuvens negras no horizonte. Não demorou muito, e indícios de chuva começaram a aparecer, com direito a trovoadas e relâmpagos.
Laura, visivelmente cansada e um pouco irritada, disse que o carro estava ficando sem gasolina. Por sorte, estávamos passando por um destes postos de estrada, então ela pegou o pequeno desvio e estacionou ali. O local não era dos mais convidativos, parecia até abandonado. Demorou alguns minutos, até que um senhor de idade, com um sorriso simpático estampado no rosto chegou até o vidro do carro. Laura pediu pra completar o tanque, mas ele franziu a testa, fez uma expressão negativa, e nos disse que a gasolina estava em falta. Conversamos alguns minutos e ao perceber nossa situação, ele disse que poderíamos ficar hospedados em uma ''casa hotel'' que havia mais pra frente. Não era longe. A gente iria poder se abrigar da chuva, descansar, tomar um banho - sim, um banho! - e no dia seguinte, sem falta, ele levaria a gasolina até lá, sem cobrar nenhuma taxa extra. Agradecemos e seguimos em frente até a tal hospedagem. Quando a gente chegou, ficamos nos perguntando sobre o preço da diária, porque o lugar parecia ser chique. Não era uma simples casa hotel como o senhor do posto havia dado a entender; o lugar era gigantesco, com janelas e vidraças grandes, e umas decorações que pareciam no mínimo caras. Trocamos olhares indecisos, mas no fim, acabamos descendo do carro. Subi os degraus e bati na enorme porta dupla, minha amiga logo atrás. Instantes depois, uma mulher de vestido negro, e cabelos longos da mesma cor do vestido apareceu para nos receber. Ela abriu um sorriso e convidou-nos para entrar. La fora a chuva já começava a cair.
Depois das apresentações, Cynthia, como se chamava a bela mulher, disse que iria nos hospedar por conta da casa até a manhã seguinte. Ela disse que eramos os primeiros hóspedes em semanas e ela já começava a sentir falta de companhia. ''Quem sabe a presença de vocês traga sorte e mais hóspedes apareçam!'' - disse ela sorrindo. Seu sorriso era mesmo muito simpático, e seu decote era interessante. Mesmo assim aquilo pareceu estranho aos meus ouvidos, porém, estávamos sem muitas opções no momento, e Laura parecia bem a vontade. Ela adorava arte e estava fascinada pela mobília, pintura e tudo mais. Até o fim da noite, ela deve ter feito umas duzentas perguntas sobre tudo.
Nós dois fomos tratados da melhor forma possível. Logo já havíamos tomado banho - que banho! - e estávamos sentados a mesa, esperando pela janta. A janta, a propósito, foi muito agradável e estava absolutamente deliciosa. Nossa melhor refeição em meses! Ah, acho que não mencionei as toalhas de banho; simplesmente a coisa mais macia que eu já havia pego nas mãos.
Cynthia jantou conosco e nós três conversamos durante horas. Como já estava ficando um pouco tarde, Cynthia dispensou os únicos dois empregados que estavam ali presentes, e nos levou pessoalmente até nosso quarto, dizendo que poderíamos ficar a vontade, pois estávamos em casa. Sua voz era realmente suave e gentil. Demorou um pouco, mas Laura começou a ficar enciumada ao perceber que eu estava simpatizando demais, mas nada falou, apenas lançou um olhar que eu já conhecia bem. Enfim. Em seguida Cynthia nos deu boa noite e se foi. Deitamos na cama, nos beijamos um pouco, mas ela não estava disposta para fazer sexo, então virou-se de lado e adormeceu. Resolvi não insistir e virei-me pro outro lado. Fechei os olhos e fiquei assim por vários minutos, mas não consegui dormir, por mais aconchegante que fosse aquela cama, só peguei no sono uma hora depois, mais ou menos.
Fui acordado no meio da madrugada, por barulhos, barulhos estranhos que pareciam vir lá de baixo. Olhei a hora na meu celular, eram 3:30 da manhã. Levantei-me lentamente e, na ponta dos pés, me aproximei da porta. Aquilo era música de piano? Dei uma olhada para Laura, que parecia ter morrido, de tão profundo que era seu sono.
Abri a porta. Estava tudo escuro no corredor. Fui seguindo o som e desci as escadas, chegando no hall do hotel. A música agora estava mais alta. Era uma linda melodia de piano. Eu também podia ouvir barulho de rizadas e gente conversando, oque era muito estranho, pois segundo Cynthia, nós eramos os únicos hóspedes.
O som parecia vir da porta dupla vermelha no fundo do hall. Me aproximei, girei a maçaneta e a abri. Acabei me deparando com um baile de máscaras. Todos usavam a mesma, que era tipo um corvo com penas bem escuras saindo pelos lados. Sinistro, mas de certa forma era elegante. Quando me dei conta, eu estava usando um smoking e uma mulher mascarada, de cabelos e vestido negros se aproximou de mim, colocou uma daquelas máscaras no meu rosto e me beijou. Eu nem consegui resistir. - ''Cynthia?'' - perguntei. Não houve resposta, mas era ela sim, eu tinha certeza. Em seguida ela veio ao meu lado, repousou as mãos sobre meu ombro e peito, e sussurrou algo em meu ouvido, algo que, a princípio fez meu coração acelerar e me deixou extremamente assustado, mas... mas logo não pareceu mais uma má ideia. Na verdade parecia uma ótima ideia. Cynthia me beijou novamente e, enquanto o fazia, fechou minha mão sobre alguma coisa. Ela sorriu pra mim e eu sorri de volta. Aquela mulher era mesmo incrível.
Sai pela mesma porta que entrei, subi as escadas e voltei pro quarto. Laura continuava dormindo profundamente. Me aproximei da cama segurando aquela enorme faca. Acabei fazendo um barulho que a acordou. Droga. Ela virou-se e me olhou, seus olhos verdes demonstraram pavor. Ela era linda mesmo quando estava com medo, e isso era fascinante. ''Desculpe amor, eu não queria acorda-la.'' - eu disse, então matei-a.
Instantes depois estávamos no salão, dançando. Laura usava aquela mesma máscara e um vestido vermelho. Um colar de brilhantes pendia de seu pescoço. Sentado no bar, enxerguei aquele senhor, dono do posto; ele me viu e ergueu a taça pra mim, e eu o cumprimentei fazendo um gesto com a cabeça.
As luzes diminuíram e uma musica lenta começou a tocar. Estavam todos dançando agora. Cynthia passou por nós dois e sorriu. Ela estava sem máscara e, agora no escuro, seus olhos tinham um estranho brilho prateado.
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