31 de out. de 2013

- A Viagem de Metrô -

O ar estava muito mais pesado aquela noite. Eu havia me embebedado como de costume, mas ainda estava sóbrio o suficiente para ter certeza de que havia uma densidade sobrenatural no ar. Sai do meu apartamento pouco depois da meia noite, segurando com firmeza aquela estranha maleta metálica que aparecera do nada na cabeceira do meu quarto a dois dias atrás. Tentar abri-la era inútil, pois não havia fechadura alguma, apenas um bilhete dizendo para eu tomar conta dela, pois ela me daria tudo que eu mais queria - o que era uma besteira, é claro, pois o que eu mais queria era morrer.


No início, cheguei a pensar que algum desgraçado estava fazendo piada comigo. Fazendo piada com meu sofrimento. Mas com o passar dos dias, mais informações iam aparecendo naquela folha já levemente amassada. E no último dia, a mensagem encontrava-se da seguinte maneira:

''Tome conta desta maleta;
Ela é a chave para que você encontre
tudo aquilo que mais deseja.
Pegue o metrô na estação Colline Castle St
exatamente a 1:30h deste sábado.
Estamos te esperando.''

Cara, se aquilo tudo era uma maldita piada, ou se eu estava ficando louco, eu não sei, mas essa era a letra da minha esposa. O modo como ela escrevia itálicamente e emendava as letras era igual. Não havia engano, não poderia haver engano! (Eu não queria que houvesse engano).

Então, se eu realmente estava ficando maluco, não importava, pois esse é o melhor motivo que encontrei para viver em semanas, desde que as duas pessoas que eu mais amo na vida morreram naquele maldito acidente de carro.

Varias vezes já tentei cometer suicídio. Varias vezes o cano daquela arma já esteve encostado na minha cabeça. O gelado cano de metal tremendo, tilintando na minha fonte, enquanto minhas trêmulas e suadas mãos ajustavam os dedos na coronha de segundo em segundo. O suor escorria em meio a lágrimas, e eu bebia o que deveriam ser meus últimos goles daquele whisky vagabundo. Havia garrafas vazias por todo lado. Mas não tive coragem, em nenhuma das 8 vezes em que passei horas sentado a beira da cama tentando pressionar o maldito gatilho. E a voz do meu pai continua me assombrando: ''Covarde, você sempre foi um covarde! Um maldito covarde! A culpa é sua seu desgraçado!'' Se ele estivesse vivo, tenho certeza que teria aparecido no enterro só para chegar perto de mim, e dizer que eu era o culpado por aquilo. Assim como ele sempre me culpou pela morte da mãe. Desgraçado. Espero sinceramente que esteja queimando no inferno.

Instantes antes de sair, fui até o espelho do banheiro e fiquei me encarando por alguns vários minutos, tentando juntar todas as informações que ainda zanzavam na minha mente. Durante estes minutos, coloquei a cabeça em baixo da torneira e agora com os cabelos, rosto e barba encharcados eu pude perceber o quanto eu parecia velho, aos 32 anos. Minha barba estava enorme e levemente grisalha. Ela percorria toda a extensão dos meus maxilares e descia pelo pescoço, terminando em fiapos. E meus olhos estavam fundos, caídos, sem brilho, sem vida. Eu não dormia direito a dias. Passava as madrugadas fumando, bebendo e tentando me matar; mas depois de mais uma tentativa falha de meter uma bala na minha cabeça, eu acabava dormindo, chorando e me sentindo um covarde. Acho que sem vida era a palavra certa pra me definir mesmo. Eu me sentia um casulo oco apodrecendo. O meu interior, a minha alma, o meu amor, a minha vida havia acabado no exato momento em que recebi aquele telefonema da polícia informando a tragédia.

- Alô, quem fala?
- Senhor Macfield?
- Sim, isso mesmo.
- Aqui é da polícia. Sinto lhe informar mas, houve um acidente e... sua esposa e sua filha... elas.... bom...
- Do que você esta falando? Onde estão minha esposa e minha filha?
- Eu sinto muito senhor, eu... elas sofreram um acidente e nós as levamos ao hospital mas os ferimentos eram...
- Não! Não!! C- Cale a boca, não diga mais nada! Apenas passe o telefone pra minha esposa, imediatamente! - meus olhos ardiam.

Houve um momento de silêncio, seguido de um suspiro no outro lado da linha.

- Ela está morta senhor, eu sinto muito.
- O que...? P-Porque estão fazendo isso?! Seu cretino, porque você está falando essas coisas!!?
- Nós sentimos muito mesmo senhor Macfield. Eu irei lhe passar o numero e endere... alô? Senhor Macfield, o senhor esta ai? Alô?...

De repente eu passei a não ouvir mais nada. O telefone caindo da minha mão, escorrendo devagar enquanto eu andava quase catatonicamente de um lado para o outro, me ajoelhando com as mãos na cabeça. Sem saber o que fazer. Sem saber como reagir. As luzes da casa pareciam distorcidas, desfocadas. Não havia mais som algum no ambiente. Aquilo... aquilo não podia ser verdade. É claro que era só um maldito pesadelo. Bati no meu rosto inúmeras vezes pra acordar logo e abraçar minha esposa e minha filha... mas eu não acordava... acho que eu ainda não acordei.

Mas isso tudo acaba essa noite, eu posso sentir.

Cheguei na estação a 1:10 da manhã. Não havia muita gente. Apenas um gari com seu macacão laranja reforçado (estava muito frio), balançando a vassoura pra lá e pra cá, trazendo o lixo, juntando-o com a enorme pá amarela e colocando-o dentro de um latão azul com rodinhas. O homem me olhou e eu desviei o olhar, de forma pouco natural, como se estivesse me escondendo. Passei então por outros dois sujeitos negros que estavam próximos a beira dos trilhos, conversando. Sentei-me em um dos bancos vazios acoplados na parede e fiquei esperando a chegada do metrô da 1:30h. Enquanto esperava, notei que algumas das pessoas que estavam ali pareciam me olhar. Não, era apenas impressão minha - ou não? - mas mesmo assim fiquei nervoso. Tentei agir de forma natural, mas acabei segurando a maleta um pouco mais firme e indiscretamente do que eu queria. Merda, porque estavam me olhando? Então o trem chegou, a 1:30h em ponto, e eu entrei nele tão rápido quanto pude.

Lá dentro estava quase lotado. Andei um pouco pelo vagão e cheguei ao lado de uma senhora idosa de cabelos curtos e bem brancos. Ela olhou pra mim com um olhar simpático e um sorriso nos lábios, como se estivesse dizendo para eu ficar a vontade. Retribui o sorriso, tentando ser simpático, mas sem muito sucesso, então sentei-me ao lado dela.

O local estava extremamente barulhento, muito mais que o de costume. Coloquei a maleta no colo, e fiquei olhando em uma direção qualquer. Pensamentos aleatórios me vinham a cabeça. Olhei pro meu relógio, ele ainda marcava 1:30h e, meia hora depois continuava marcando o mesmo horário. Deve ter estragado. Resolvi me levantar um pouco - estava impaciente - e foi então que notei algo: todos os passageiros carregavam uma maleta prateada consigo, inclusive a senhora idosa. De repente o metrô tremeu, como se algo o tivesse atingido. As luzes do teto piscaram e uma delas estourou. Todos ficaram assustados. Alguns se abaixaram. Em seguida outro impacto ainda mais forte, e dessa vez não consegui me segurar. A maleta voou dos meus braços e eu dei com a cabeça em um dos ferros de apoio. Cai desacordado no chão.

(- Jack... Jack meu amor, acorda...
- Papai...
- Jack...
- Papai. Levanta papai!
- Levanta meu bem, falta pouco agora.)

Abri os olhos assustado, e fui recobrando a consciência aos poucos, levantando- me primeiro com o apoio dos braços, depois dos joelhos. Levei a mão a testa para ver se estava sangrando. Não estava. Mas eu sentia uma dor insuportável na lateral da cabeça. Parecia que meu cérebro havia explodido. Um pouco tonto e enjoado, vomitei uma espécie de líquido negro, e então segurei-me nos ferros de apoio. Fiquei parado uns instantes, até melhorar. O trem estava completamente silencioso. Mas as esperai, o que esta acontecendo? As pessoas haviam desaparecido! Procurei minha maleta, ela estava em cima de um dos bancos. Peguei-a e olhei assustado ao redor. Fui até uma das janelas, estava muito escuro e não dava para enxergar nada. Era como se o trem estivesse andando sobre um grande vazio. Percorri todos os vagões o mais rápido que pude. Todos estavam vazios. Enfim cheguei no vagão de controle, mas não havia ninguém ali também. Olhei para fora pelos vidros frontais. Não haviam trilhos, não havia túnel, não havia nada! Que merda é essa!? Então uma luz branca apareceu ao longe, e foi ficando cada vez mais próxima e intensa, até tomar por completo o ambiente. Meus olhos demoraram para se acostumar a aquele enorme clarão, mas depois de um tempo eu consegui abri-los. O trem continuava andando - ou será que estava voando? Um estranho zunido impregnou o ambiente. Olhei para a maleta, ela estava aberta. Dentro dela havia uma chave branca. O que eu deveria fazer com isso? Olhei para o painel de controle. Havia uma entrada ali, a palavra ''liberdade'' estava escrita acima dela. Minha chave encaixou perfeitamente, girei-a e o trem parou. Fui até uma das portas de saída e saí em um lugar sem decorações. Tudo era exageradamente branco e brilhante. Não haviam bancos, não havia luminária, não haviam portas. Havia apenas... um grande vazio. Nisso, duas sombras surgiram ao longe. Minha visão ainda se acostumava a intensa luminosidade. Segui-as com a mão sobre as vistas, para tentar filtrar melhor a luz. Quando cheguei perto o suficiente, lágrimas começaram a escorrer dos meus olhos. Abracei minha esposa e minha filha. Ela colocou a mão sobre meu rosto e me beijou. Segurei-as o mais firme possível e as enchi de beijos, enquanto chorava sem parar. Não sei ao certo quanto tempo ficamos assim, mas eu não iria mais solta-las. O zunido ainda tomava conta do ar, e ficou mais alto por alguns segundos, mas depois ele foi desaparecendo, e eu finalmente pude ouvir a voz das duas. Elas me pediram pra levantar, me deram as mãos e me levaram até uma porta que não havia ali antes. Entramos e fui tomado por uma sensação de paz e felicidade nunca antes sentidas. Até então eu estava com medo, medo de perdê-las de novo, medo de que aquilo fosse uma alucinação; mas pouco tempo bastou para eu perceber que poderíamos ficar juntos novamente. Nunca mais nos separaríamos e isso era tudo que eu queria.

No meu apartamento, jazia meu corpo estirado de barriga pra cima na cama. Haviam varias garrafas de Whisky vazias na escrivaninha e logo abaixo, o cartucho da bala rolava lentamente pelo tapete, até finalmente parar embaixo da cama, onde o sangue escorria e estava formando uma poça. Sobre meu colo estava um álbum de fotos da família. Várias fotografias estavam espalhadas pela bagunçada cama. Na minha mão esquerda o rosário da minha esposa estava fechado firmemente entre os meus dedos. E na minha mão direita, estava o revólver com o cano ainda quente.

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